Noeval de Quadros
Numa terça-feira de manhã, ele estava no hospital, para doar sangue. Disse que faz isso habitualmente, apenas para colaborar. É moço ainda, saudável e a doação de sangue até lhe faz bem.
Conversamos enquanto eu o acompanhava ao banco de sangue. Dei-lhe o braço porque ele nada enxerga: é cego de nascimento. Nossa conversa foi mais ou menos esta:
"— Já tentou alguma cirurgia para corrigir a visão?"
"— Várias".
"— Enxerga alguma coisa?
"— Nada, nem vultos".
Ao responder às perguntas da moça que preenchia a ficha de doador, declarou sua idade (33 anos) e profissão (advogado). Quis saber como ele se formara. Disse que havia estudado na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Fiquei imaginando o esforço desse moço: numa universidade muito concorrida, deve ter enfrentado um vestibular duríssimo, com vários candidatos que enxergavam e poderiam se preparar bem melhor que ele.
Não sei se teve algum tratamento diferenciado, nesse vestibular, por sua condição especial.
Mas só o fato de ter chegado até o ensino superior já demonstra a sua perseverança e força de vontade.
Na Faculdade, sempre estudando pelo método braille, concluiu com aproveitamento todas as disciplinas, terminou o curso superior, ao final ainda submeteu-se ao rigorosíssimo exame da OAB e hoje está advogando em Curitiba.
Perguntei-lhe como iria do hospital para casa. Disse que iria caminhando, sozinho, como sempre faz, com o auxílio de sua bengala (monitor).
A cidade, movimentada, violenta, de trânsito caótico, não o amedronta. Nada impedia o jovem doutor de locomover-se por aí, pleno de energia.
Pensei quantos desafios ele superou para chegar onde está. Privado da visão, que é o principal sentido da vida de relação, nem assim ele se sentiu um desvalido. Foi à luta e tem vencido muitos obstáculos. E, naquele dia, ainda encontrava tempo e disposição para doar sangue, em favor de um conhecido, que estava internado no hospital.
Nem guardei o seu nome. Não importa. Logo estava ele na rua, misturado com diversas pessoas, cada uma cuidando das suas preocupações.
Lembrei da mensagem de Vianney, Cura de Ars:
"O olho aberto está sempre pronto a fazer com que a alma caia; o olho fechado, pelo contrário, está sempre pronto a fazê-la se elevar a Deus. Acreditai em mim, meus bons e caros amigos, a cegueira dos olhos é, muitas vezes, a verdadeira luz do coração, enquanto a visão é, freqüentemente, o anjo tenebroso que conduz à morte". (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap.8, 20).
A lição evangélica esclarece a mensagem de Jesus: Se teu olho é motivo de escândalo, arranca-o.
Muitos há que, pelo arrependimento, escolhem a dura expiação da cegueira, quando o seu olho foi motivo de queda.
O arrancar não é, de modo algum, físico, mas sim moral. Jesus ensinou que é preciso arrancar a raiz do mal, o vício que nos fez cair. Em seu lugar, ver brotar a virtude que está em potencial dentro de nós.
Arrependimento, expiação, reparação. Eis um dos caminhos para nos limparmos de mazelas graves do Espírito.
Enquanto via o jovem cego distanciar-se na multidão, percebi, deslumbrado, que eu podia enxergar: sem dúvida, o dia estava muito bonito, tudo parecia ter mais cores. Comecei a observar os detalhes das árvores, dos carros, olhar melhor quem passava. Poxa, fazia um bom tempo que eu olhava mas não prestava atenção!
Refleti sobre a bênção dos órgãos materiais perfeitos. Que maravilha poder ler, escrever, decifrar o mundo! Pelo menos naquele dia, e diante do exemplo de um irmão que realmente tem vencido desafios importantes, deixei de lamentar tantas coisas fúteis. Foi uma preciosa lição.
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