segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Jornada Espiritual do Homem

A leitura do livro Boa Nova, mais que interpretação histórica, enseja uma análise psicológica. Isso porque o autor espiritual utiliza-se de passagens da vida de Jesus para inserir lições cotidianas, visando o homem moderno.
No capítulo 27 do livro, intitulado A Oração do Horto, o autor espiritual descreve os últimos momentos de Jesus com os apóstolos, quando,
então, o Mestre se retira para orar, na companhia de Pedro, João e Tiago. É a culminância da história de Jesus, momentos que antecedem a crucificação e o posterior reencontro com o Pai. Representa os momentos culminantes de nossa vida.
Reencontro com o Pai tem o sentido pleno da palavra religião, quando
destacamos o sentido latino original, religare, ou religação com o criador.
Mais que religação, reencontro significa conquista. Podemos dizer com Rudolf Otto, filósofo das Religiões, que o reencontro é o estado numinoso, ou a transcendência ante a divindade.
Reencontro, religação, implica, inicialmente, um estado original de
ligação, uma distinção do estado original, e o retorno dos elementos
iniciais a uma nova relação. É ilustrado pela alegoria do Éden.
Após a criação da Terra e dos céus, Deus criou o homem, do limo da terra, e chamou-o Adão. Para lhe fazer companhia, extraiu uma costela de Adão e criou a mulher, Eva. Viviam num Jardim, que lhes supria todas as necessidades. Podiam ir para onde quisessem, apenas estavam proibdos de provar do fruto da árvore que dá o conhecimento do Bem e do Mal. Iahweh mostrava sua face, partilhava das delícias do Jardim e era por suas criaturas reconhecido.
Eis que o par humano é convidado, pela serpente, a provar do fruto da
árvore que dá o conhecimento do Bem e do Mal. Nesse instante, vencidos pela tentação de provarem o fruto, tudo se modifica. O estado original se desfaz e eles se reconhecem nus. Cobrem seus sexos e se escondem. Já não vêem o Criador, apenas ouvem sua voz ameaçadora, que os expulsa do Paraíso. Iahweh, nesse instante, diz que, agora que o homem se assemelhou a Deus, tendo o conhecimento do Bem e do Mal, deve colher o fruto da árvore da vida e viver para sempre.
O estado original é descrito, pelo narrador da Gênese, como total
indistinção. Homem e mulher não se reconhecem como tal, a harmonia com os animais se dá pela semelhança e não por amor. A face de Iahweh era visível, mas não se distinguia dos outros. O que modifica o estado primevo é o surgir da serpente. Ser que se arrasta, terreno, representa a inteligência e o perigo, aquela que guarda um segredo, mas também a morte. A serpente é o elemento feminino, capaz de gerar vida, a Mãe Maior. Iahweh, elemento masculino, criador, representado também pelo vento, sopra o Espírito pelas narinas de Adão. Iahweh e a Serpente se tornaram pares opostos para impulsionarem a jornada do homem, foi o que o contador dessa bela história percebeu. Pela tensão entre a ordem de Iahweh e o convite da Serpente, quebraram a indistinção. Naquele instante perceberam-se homem e mulher, masculino e feminino, já não mais podiam ver a face de Iahweh, apenas escutar a sua voz, que lhes oferece a árvore da vida. Árvore da Vida é o Zohar, que a Kabbalah adota como símbolo da jornada espiritual do homem.
Nela estava enrolada a Serpente, porque a árvore também é fruto da terra, mas dirige seus galhos às alturas. Representa o Espírito, que desce dos céus às profundezas da terra, mas também a seiva que sobe das profundidades à amplidão do céu. A árvore da vida é a realização da religação, da redenção do homem.
Neste aspecto, que se torna crucial para a compreensão de Deus, o
Espiritismo se coloca frontalmente em oposição à Teologia ortodoxa. Segundo a visão mais conservadora do Cristianismo tradicional, o homem parte de um estado de consciência. A Gênese seria interpretada não como alegoria, mas descrição de uma realidade fundamental. Segundo a Teologia, Adão e Eva assumem atitude consciente e essa rebeldia é comparada à rebeldia luciférica, representada pela serpente.
Sendo a Gênese interpretada da forma teológica, a evolução do homem deve se dar pelo suplício e abominação da Natureza (causa da queda), o que justifica a devastação do planeta nos países cristãos, a abominação da mulher pelas tradições de tronco judaico. O homem, herdeiro de Adão, já nasce marcado pelo pecado original e seus impulsos fisiológicos devem ser reprimidos e suprimidos, como oriundos do pecado original.
A repressão e a supressão não eliminam os impulsos, apenas os torna
inconscientes. Continuando a existir, porém sem se manifestarem, geram uma vida psíquica oculta, que passa a pressionar a consciência, cada vez mais, sendo causa de incontáveis neuroses de variada ordem. Os aspectos reprimidos da personalidade geram a Sombra, termo usado pela psicologia junguiana para descrever esse complexo psicológico inconsciente.
O lado sombrio do homem foi brilhantemente percebido por Robert Stevenson, em seu livro Dr Jeckill and Mr Hyde. O Dr. Jeckill era médico da corte inglesa, respeitado por toda a sociedade de sua época e tido como modelo.
Enquanto o médico fazia carreira nos corredores da sociedade londrina, os subúrbios, parte baixa e escura da cidade, conheciam a atuação de um monstro, um ser repugnante, grosseiro, que frequentava bares e prostíbulos, assassinando cruelmente prostitutas, envolvendo-se em brigas com seus pares.
Paralelamente ao crescimento social de Dr. Jeckill, cresciam as barbaridades de Mr. Hyde. Eis que, finalmente a polícia descobre o monstro e qual não foi a surpresa em constatar que ele nada mais era senão o brilhante médico, que, facilitado pelo uso de solução psicoativa liberadora, transformava-se, dava vazão ao seu aspecto obscuro. Percebamos que, em inglês, hide significa oculto, tendo ocorrido um trocadilho com o nome do monstro.
A sombra é gerada pela repressão de aspectos da personalidade. A não manifestação de certos instintos psicológicos permite o convívio em sociedade, mas a repressão o faz tornarem-se inconscientes.
A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa
qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego_ aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente, consistir de fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo. (Marie-Louise Von Franz, em O Homem e Seus Símbolos).
Percebemos nossa sombra mais facilmente no outro, em críticas azedas de aspectos que não nos agradam, e tomamos conhecimento dela nos momentos em que nos flagramos em pequenos delito, que nos perdoamos por serem essas faltas também presentes nos outros.
Tornarmos conscientes da sombra de nossa personalidade, é um trabalho hercúleo, mas ponto-chave para o autoconhecimento. Nossa jornada espiritual, na medida em que já fortalecemos nosso ego, exige que reconheçamos nossa sombra e a integremos em nossa personalidade.
O reconhecimento da sombra é processo importante para que não nos
entreguemos aos seus impulsos e nem alimentemos a Sombra coletiva que se forma pelo convívio social. Os Espíritos dizem, na questão 893 de O Livro dos espíritos, que há virtude sempre que há resistência voluntária ao arrastamento das tendências. O que são essas tendências senão impulsos inconscientes que ressaltam o mal que ainda alimentamos? Numa linguagem junguiana, diríamos que há virtude sempre que há conscientização de aspectos da sombra pessoal.
O Espiritismo nos possibilita postular que a sombra é formada desde a nossa origem, quando ela assume características coletivas. O momento é o de superarmos a sombra acumulada também em encarnações anteriores e essa é a característica das provas a que somos expostos. O que é o desejo criminoso que trata a questão 393, decorrente de faltas em vida pretérita, senão um impulso inconsciente, manifestação da sombra?
Aí, novamente, a solução que a Teologia nos oferece é, novamente, a
repressão desses impulsos, a supressão das tendências e, decorrente disso, a alimentação da sombra, a criação de um monstro. A sombra partilhada pela coletividade, que são impulsos inconscientes, tomou forma, na sociedade européia, na figura de Hitler, que foi a concretização da sombra do povo germânico.
A Teologia é insuficiente ao homem moderno, porque criou uma cisão entre o homem e Deus. Tornando Deus exterior ao homem, separou o Criador de sua criação, teve necessidade da figura de Satanás como opositor a Deus na luta pela redenção do homem, separou o espírito da matéria e encarou sua ligação como fonte do pecado.
Agora conheçamos a interpretação espírita da alegoria do Éden.
A visão de que a Gênese mosaica relata jornada de evolução do homem é partilhada pelos Espíritos, que, na questão 115 de O Livro dos Espíritos, descrevem essa rota ascensional: ³Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem saber. A cada um deu determinada missão, com o fim de esclarecê-los e de os fazer chegar progressivamente à perfeição, pelo conhecimento da verdade, para aproximá-los de si. Nesta perfeição é que eles encontram a pura e eterna felicidade. Passando pelas provas que Deus lhes impõe é que os Espíritos adquirem aquele conhecimento. Uns aceitam submissos
essas provas e chegam mais depressa à meta que lhes foi assinada. Outros sóa suportam murmurando e, pela falta em que desse modo incorrem, permanecem afastados da perfeição e da prometida felicidade.
Para os Espíritos, o homem parte da Inconsciência à Consciência. Na
inconsciência original, recebe de Deus uma missão, o que mostra que o Criador percebe a criatura, que tem o Criador dentro de si, como imagem inconsciente. Deus não é o Outro, não se manifesta de fora para dentro, mas a partir, através e além do homem.
O visão de Deus presente na criatura desfaz a necessidade de um agente do mal e corrige a distorção de que o mal é próprio do homem como oposição a Deus. Compreendemos, com os Espíritos, que o Mal é uma opção exercida por cada um, que o atrasa, mas não o deserda. O Mal não é o outro, ou o que vem de fora. São as aptidões a se exercerem, como impulsos inconscientes, é um dos aspectos da sombra da personalidade.
Compreendemos isso quando refletimos que cada um de nós parte da
Inconsciência com uma missão a cumprir. Essa missão que impulsiona o espírito ao progresso, deve manifestar-se, inicialmente, na forma de impulsos psíquicos, ou instintos psicológicos.
Os impulsos psíquicos, como impulsos inconscientes, não têm forma ou juízo moral. O juízo moral e a forma são dadas pela interação com o meio, nas provas a que o espírito é submetido, formando a vontade, que cederá às influências exteriores, boas ou más, numa atitude de livre-arbítrio (ou vontade livre). É o que nos diz a questão 122 : O livre-arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire a consciência de si mesmo. Já não haveria liberdade, desde que a escolha fosse determinada por uma causa independente da vontade do Espírito. A causa não está nele, está fora dele, nas influências a que cede em virtude da sua livre vontade. É o que se contém na grande figura emblemática da queda do homem e do pecado original:
uns cederam à tentação, outros resistiram.
A realidade do Mal é inegável, mas é um dos aspectos da jornada espiritual, livre opção do homem, todavia, os que optaram por esse caminho, nele não permanecerão eternamente, como nos ensina a questão 125: Os Espíritos que enveredaram pela senda do mal poderão chegar ao mesmo grau de superioridade que os outros?
Sim; mas as eternidades lhes serão mais longas.
O mal reprimido pelo ego, torna-se inconsciente e alimenta a sombra. Ao contrário, o mal trazido à consciência do ego, pode ser trabalhado como tendência a ser resistida.
Seria o Espiritismo gerador de sombra, nas dimensões do cristianismo
tradicional? Inicialmente, o Espiritismo veio ao mundo na fase de renovação antevista pelo Cristo. Allan Kardec enxergava no Espiritismo e no Magnetismo duas ciências complementares.
O Magnetismo evoluiu ao Hipnotismo, deste para a Psicanálise e, daí à
Psicologia Analítica Junguiana, tronco-mãe da Psicologia Transpessoal. A descoberta da dinâmica do inconsciente pessoal, por Freud, e o trabalho de Jung, ampliando o conceito, chegando ao inconsciente coletivo, é uma das conquistas do homem moderno. Os conceitos freudianos e, mais recentemente, os de Jung, uma vez aplicados à educação, liberam o peso da repressão, através da compreensão dos impulsos e de suas origens, do que significam e
como devem ser trabalhados.
O Espiritismo reconhece a sombra como tendências, oriundas de experiências anteriores. Reconhece que existem forças psicológicas instintivas, que devem ser trazidas à consciência. Não tem Deus como Outro, e o tem dentro de si.
Assim, Deus não é o juiz exterior, mas a própria consciência.
Allan Kardec, comentando a questão 127 de O Livro dos Espíritos, afirma: Os espíritos que desde o princípio seguem o caminho do bem nem por isso são Espíritos perfeitos. Não têm, é certo, maus pendores, mas precisam adquirir a experiência e os conhecimentos indispensáveis para alcançar a perfeição.
O que entender por seguir o caminho do bem desde o princípio não ser suficiente para alcançar perfeição?
Novamente recorremos à questão 115, que nos fala da necessidade de provas para a aquisição de conhecimento para chegarmos à perfeição. Bem e mal são opções evolutivas, que aceleram ou atrasam a chegada à meta. A punição pelo atraso foi o que os Espíritos chamara de eternidades mais longas.
O Espiritismo oferece fundamentos psicológicos para a compreensão e integração da sombra à consciência. Sua ética transcendente une o homem a Deus e oferece a jornada espiritual de reencontro.
Poderiam, nesse instante, nos perguntar se a não repressão significa dar vazão, e, com isso, gerar situações incontroláveis, incompatíveis com a virtude?
A não repressão significa tornar consciente e integrar essa energia à
consciência. Esse é um conselho cristão!
Jesus, disse também àquele que o convidara: Quando derdes um jantar ou uma ceia, não convideis nem os vossos amigos, nem os vossos irmãos, nem os vossos parentes, nem os vossos vizinhos que forem ricos, para que em seguida não vos convidem a seu turno e assim retribuam o que de vós receberam.
Quando derdes um festim, convidai para ele os pobres, os estropiados, os coxos e os cegos. - E sereis ditosos por não terem eles meios de vo-lo retribuir, pois isso será retribuído na ressurreição dos justos. Um dos que se achavam à mesa, ouvindo essas palavras, disse-lhe: Feliz do que comer do pão no reino de Deus! (S. LUCAS, cap. XIV, vv. 12 a 15.)
Essa passagem é usada por Kardec como exemplificação de caridade aos fracos e é inspiradora de trabalhos assistenciais nobilíssimos. Mas permito-me uma interpretação psicológica, para ilustrar o que vimos tratando. Para Platão, o sentido de banquete não é apenas o de alimentar-se, o saborear alimentos nobres. O banquete constituía de um simpósio, onde os integrantes trocavam idéias e se conheciam, encerrando esse acontecimento através da alimentação, que podemos tomar como sagração do conhecimento adquirido. Pobres, coxos,
mendigos, estropiados, aparecem nos sonhos como símbolos inconscientes da sombra. Após conhecermos a sombra, extraimos dela e reintegramos à consciência, a energia que se perdia no inconsciente.
Somente poderemos resistir ao arrastamento de uma tendência que conhecemos.
A virtude é para poucos, ainda. A repressão como fuga do pecado, que é uma pregação teológica, afasta o homem da virtude, porque o atrai
irresistivelmente à sua sombra.
A questão 919-A traz um exercício prático e eficaz de percepção da própria sombra, que é a análise diária das ações, com o recurso psicológico de se colocar na posição do outro. Assim, permite reconhecer a sombra projetada no outro.
A eliminação da projeção da sombra inconsciente, tornada agora consciente, permite o reconhecimento das tendências e a resistência ao arrastamento por elas exercido, mas não é o completar do processo evolutivo.
A necessidade de evoluirmos do amor Eros ao amor Cáritas passa a ser a ocupação espírito, a par da integração da Sombra, em sua jornada ascensional.
Amor Eros é o amor que une os pares opostos, fundamento da energia criativa da mente humana. A busca de seu par de opostos é representada pela alegoria contada por Platão dos seres arredondados, com dois pares de membros, duas cabeças, distintos uns dos outros, porém formadores de uma unidade, que Zeus
dividiu ao meio com sua espada e os espalhou pela Terra. Desde então, uma metade busca a outra, para formarem novamente o par de opostos perfeito.
Eros também acende o fogo da paixão, se acentua doentemente na
sensualidade, é o ativador dos rompantes criativos e também destrutivos, em nome do amor, da religião, da pátria, do Estado.
O amor Cáritas conhecemos a partir do Cristo, que é o reconhecimento do outro, o amor transcendente que parte do Deus que vive em nós. Amor Cáritas não se opõe ao amor Eros, o transforma, alimenta, impulsiona; mas não se prende a ele, encaminha o homem às realizações permanentes e modelares da humanidade.
O amor Cáritas pode ser representado pela mensagem do espírito Cáritas, em O Evangelho Segundo o Espiritismo: Chamo-me Caridade; sigo o caminho principal que conduz a Deus.
Acompanhai-me, pois conheço a meta a que deveis todos visar. Com o coração túmido de compaixão, eu, que nada tenho, me fiz mendiga para eles e vou, por toda a parte, estimular a beneficência, inspirar bons pensamentos aos corações generosos e compassivos. Por isso é que aqui venho, meus amigos, e vos digo: Há por aí desgraçados, em cujas choupanas falta o pão, os fogões se acham sem lume e os leitos sem cobertas. Não vos digo o que deveis fazer; deixo aos vossos bons corações a iniciativa. Se eu vos ditasse o proceder,
nenhum mérito vos traria a vossa boa ação. Digo-vos apenas: Sou a caridade e vos estendo as mãos pelos vossos irmãos que sofrem.
Mas, se peço, também dou e dou muito. Convido-vos para um grande banquete e forneço a árvore onde todos vos saciareis! Vede quanto é bela, como está carregada de flores e de frutos! Ide, ide, colhei, apanhai todos os frutos dessa magnificente árvore que se chama a beneficência. No lugar dos ramos que lhe tirardes, atarei todas as boas ações que praticardes e levarei a árvore a Deus, que a carregará de novo, porquanto a beneficência é inexaurível. Acompanhai-me, pois, meus amigos, a fim de que eu vos conte entre os que se arrolam sob a minha bandeira. Nada temais; eu vos conduzirei pelo caminho da salvação, porque sou - a Caridade. - Cárita, martirizada em Roma. (Lião, 1861.)
Cáritas e Eros em harmonia no Espírito humano propiciam o surgir do
Si-Mesmo. Esse termo foi usado por Jung para designar o fulcro que impele o homem ao progresso. A teoria junguiana não trabalhou com o conceito de reencarnação, que foi julgado como improbabilidade científica na época, por isso trata da conquista da consciência pelo Si-Mesmo como fenômeno elitista, por poucos alcançado. Essa afirmativa é uma realidade parcial, pois ainda são poucos os que conquistam, tomando por base a população. Todavia, na
medida em que todos chegaremos à perfeição, uns mais depressa, outros mais lentamente, essa conquista será de cada um, sem exceção.
As Leis de Deus estão escritas na consciência (q 621). Sendo elas
necessárias e bastantes à felicidade do homem, sendo o homem infeliz quando delas se afasta (q 614), constituem, no homem, o fulcro diretor da evolução humana. Enquanto inconscientes, atuam na forma de impulsos psicológicos e o conjunto dessas leis gera a totalidade almejada pelo homem. Consciência e Si-Mesmo são conceitos que aproximam a psicologia do Espiritismo.
Quando o Si-Mesmo passa a ser o centro da consciência, ocorre uma
dissolução do ego, que se transforma. É o fenômeno percebido por Paulo, como morte do homem velho e nascimento do homem novo.
O momento de dissolução do ego foi percebido pela Mitologia como travessia noturna. O nome travessia indica o sentido passageiro, transitório, o deslocar de um ponto a outro. É noturno porque ocorre pela solidão e abandono ao inconsciente. O nascer do dia, que traz o homem novo, ocorre após a amargura da noite fria. Recorrendo mais uma vez à simbologia, a noite é regida pela lua, elemento feminino como a Terra e a Serpente, como a árvore da vida. A travessia noturna é a culminância do retorno às origens, o retorno ao Jardim. A serpente guarda um tesouro, que será revelado com o nascer do dia, as raízes estreitas extraem da Terra a seiva, mas causam a dor da capilaridade a ser vencida. Novamente com a serpente, na ausência de Deus, que ainda não se revelou. Novamente diante de si, que retorna à Terra
que o gerou.
O amanhecer traz o sol fulgurante, elemento masculino, fertilizador, que é conseqüente à noite. A radiância do sol marca o reencontro com Deus. Esse instante transcendente só é possível após a travessia na noite escura, após o retorno à Mãe Terra, é o segredo que a serpente guarda e é revelado ao nascer do sol.
Existem casos em que a travessia noturna se estende pela noite sem fim, onde a solidão e a angústia são alimentadas pelo desejo de retorno ao mundo espiritual. Espíritos em missão podem experimentar tal desejo, que é amplificado pela falsa percepção de abandono.
A própria reencarnação pode ser comparada à travessia noturna, quando o Espírito, imerso na densidade grosseira da matéria, submetido às necessidades do corpo, experimenta a noite do corpo sonhando com os dias venturosos do espírito. São percepções que se afiguram perigosas, na medida em que, não corrigidas, pela auscuta ao Si-Mesmo, às Leis de Deus gravadas na Consciência, podem conduzir a quadros depressivos mais sérios. Nesses casos, é necessária a
proteção ao ego, pois sua dissolução acarretaria transtornos mentais que atrasariam a jornada.
Essas travessias que se dão sem o amadurecimento do Espírito, experimentam a alma e geram conhecimento, todavia, trazem os riscos que reportamos.
O momento de Jesus no Horto é um exemplo de travessia noturna. A solidão e o abandono são premissas da glorificação. Humberto de Campos, ao descrever a cena do Horto, retira a lição como exemplificação a todos nós. Percebeu o autor espiritual que todos nós passamos por várias travessias noturnas, que nem todas levam ao reencontro com o Pai, mas são situações muito importantes para os que a vivenciam.
Naquele instante do Horto, cada um dos apóstolos estava vivendo sua
travessia noturna. Pedro, imerso em conflitos, apenas chegaria ao término da travessia na manhã do Petencostes. João a encerraria nos instantes da crucificação, estando nos braços de Maria, qual criança que, naquele momento se tornaria adulto. Tiago, após o Petencostes, encerraria sua travessia com as flechas sacrificiais que dilacerariam seu coração.
Bartimeu era cego desde há muito tempo. Rezava a tradição que as doenças da alma deveriam ser curada no Templo e, certamente, já passara por vários sacerdotes. Continuava cego e vivia da mendicância. Era um homem medíocre e sem qualquer virtude. Mas percebe movimentação a sua volta. É possuído por um sentimento de glorificação, como se seu Espírito enxergasse. Levanta do chão sujo, enfrenta a multidão com os cotovelos, gritando, repetidamente: Jesus, filho de David, tende piedade!. Insiste, gritando mais e mais alto,
até que um dos discípulos o busque e o leve à presença do Mestre. Bartimeu, que queres que eu te faça?. Que eu veja, Senhor!. Naquele instante, o sol clareou novamente os olhos de Bartimeu, que voltou a enxergar. Terminava ali a travessia noturna de Bartimeu, que reencontrara a luz de sua alma, que guiaria seus passos para o reencontro com o Pai que nunca nos abandonou, nunca esteve fora de nós.
O filho pródigo foi recebido com festa, porque sua fuga não rompeu os laços com o pai.
Jamais tivemos a oportunidade tão plena de percebermos que Deus vive em nós. Rompendo as amarras da teologia sufocante, o Espiritismo permite que libertemos o Deus aprisionado em nossa alma, sufocado por atribuirmos sua presença como Ser distante e fora de nós.
Sois deuses, disse o salmista e repetiu Jesus. Que o deus que habita em mim possa se manifestar sempre, através do deus que habita o coração de cada um.

- Jorge Cecílio Daher Júnior (GO)

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